quinta-feira, 14 de outubro de 2010

senhor velho

O senhorzinho foi almoçar, tranquilo. No self service, se serviu com bife, arroz, feijão, salada e batata frita - não da palito nem da palha, gostava daquela fininha, que quase dava pra ver através. Por ser quinta-feira permitiu-se abusar um pouco, pediu também uma cerveja "bem gelada, que é pra fazer valer".

Antes de sentar, derramou a cerveja com todo o cuidado na tulipa, sentia o líquido gelando os dedos, degustando cada gotícula que o copo criava. Pensava que a pele grossa já não sentia tão bem quanto antes, mas se enganou. Ainda de pé, observou a rua. Sentiu a brisa, suave, balançava as árvores menores e sequer incomodava as árvores maiores, mais antigas. Lembrou que quando era menino aquelas árvores eram do tamanho dessas que agora se balançavam com o vento. Agradeceu por dentro por poder se balançar ainda, mesmo sendo tão velho quanto as outras, inabaláveis. Perguntou-se que se mesmo sob a casca grossa elas sentiam o frescor da brisa. Lembrou dos dedos, se descobriu mais uma vez.

Sentado, apreciou cada garfada fumegante de arroz novinho, cada gole da cerveja gelada e amarga. Olhava pro mundo, que de vez em quando olhava de volta pra ele.

Guardou o último gole de cerveja pra tomar com algumas batatas transparentes que ele reservou com cuidado. E as comia enquanto analisava a comanda que marcaram seu pedido: de plástico, dura, com um código de barras embaixo, um número em cima e uma propaganda atrás, para a qual ele não prestou atenção. Virou e desvirou umas 4 ou 5 vezes, até terminar a batata e engolí-la com seu precioso último gole de cerveja.

No caminho para o caixa, pensou na comanda. Um número e um código. Lembrou-se de quando davam papéis com o valor da conta. Parecia mais lógico. "Dinheiro ou cartão?" Perguntou o caixa. O senhorzinho sempre pagava em dinheiro, não andava com cartão, mas com essa pergunta ele encontrou uma lógica. Antigamente se pagava um papel com papel, hoje se paga um plástico com outro plástico. Ficou feliz pela sacada.

Escolheu um doce, uma barra de chocolate branco, pequena, e saiu para a rua. Lá fora, sentiu novamente o vento bater. Saboreou o doce cremoso do chocolate e sentiu ele derretendo devagar nos seus dedos.

Do outro lado da rua, viu a antiga árvore. Determinado a fazer-lhe uma visita, atravessou o mais rápido que podia. Um pequeno pique e lá estava. Olhou bem a velha amiga e sentiu sua casca grossa com os seus dedos. Na certeza de que ela sentia o carinho de volta. O que ele não havia percebido, talvez pelo vislumbre, talvez pelas lembranças, foi o carro que teve de frear bruscamente quando ele atravessou. Só percebeu depois com o som da buzina alta, seguida do grito cheio de revolta, "seu velho!!"

"Sou mesmo" pensou o senhorzinho. E sorriu por dentro e por fora também.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

passi e flora

Os tempos não estavam muito fáceis, desde quando proibiram as pessoas de relaxar, as coisas estavam ficando cada vez piores. A justificativa foi simples: Pessoas estão relaxando quando não estão trabalhando. Pessoas que não trabalham não ganham dinheiro. Sem dinheiro o sistema não funciona. Claro que ninguém engoliu essa ladainha, todo mundo sabia que haviam outros interesses por trás, mas com tanto estresse ninguém teve tempo de tentar questionar.


Substituiram a Sessão da Tarde pela Temperatura Máxima, os livros de piadas foram todos queimados, assim como as fitas cassetes do Ari Toledo. Nas farmácias não tinha mais Valium, Lexotan, Diazepam, Lorax ou Prozac. As pessoas viviam no estresse constante. 


Em meio a esse mundo corrido numa pequena empresa com anseios de grandeza, duas faxineiras, uma pequena pequena, mas ainda sem ser anã, e a outra era mais alta, mas não tinha nenhum traço marcante. 


Nessa pequena empresa, como em todo resto do mundo, as pessoas estavam estressadas, num clima de tensão constante, menos as duas faxineiras. Elas pareciam sérias enquanto trabalhavam, mas quando surgia uma oportunidade, faziam piada e sorriam fácil. Mas elas não estavam só espalhando sorrisos. No almoxerifado, ao anoitecer se encontraram:


_ Trouxe?
_ Sim, estão aqui... eles cresceram?
_ Já, estão bem maduros. Acho que já tem como usar...
_ Ótimo! Eles disseram que tinha de estar bem amarelinhos mesmo.
_ E foi díficil?
_ Não, até que não... coloquei na sacola, embaixo dos sacos de café. Eles abafam qualquer cheiro.
_ Mas sabe duma coisa?
_ O quê?
_ Acho que estão desconfiando da gente...
_ Sério?! 
_ É... sabe aquele gordinho lá de cima? Então, vi ele olhando meio estranho...
_ Sei... é melhor darmos uma maneirada nas brincadeiras... Se nos descobrem...


Elas não enxergaram, ao fundo,  o gordinho do setor de cima ouvindo cada palavra. Ele estava de fato desconfiado, mas não tinha intenção de entregá-las, mesmo porque não sabia o que elas estavam fazendo. Ele estava mais é curioso. Ao saírem, ele foi até o armário ver o que tinha por lá. Em meio a todo o café ele encontrou, dezenas e mais dezenas de maracujás maduros, dos doces e dos azedos. Só de sentir o cheiro forte da fruta seus ombros já abaixaram, sua respiração ofegante, tranquilizou, seus olhos foram fechando e sua boca foi se abrindo. Pegou um maracujá e o cheiro bem de perto, bem profundo. O comeu como uma maçã, com casca e tudo. Deitou no chão, riu e dormiu. Até o amanhecer.